A modificação unilateral da metodologia executiva no contrato de empreitada e a violação do princípio da boa-fé contratual

Edson Garcia Bernardes
Rodrigo Alves Pinto Ruggio
Raphael Miguel da Costa Bernardes

Em um contrato de empreitada, a sequência executiva para a realização das obras e serviços objeto do negócio jurídico tem importância substancial para o adimplemento das obrigações fixadas pelas partes. Nesta modalidade de contrato, diversos fatores devem ser levados em consideração pelo empreiteiro quando do planejamento dos trabalhos, tais como o prazo de execução dos serviços, a geografia e a geologia do local, o clima, a disponibilidade de insumos, materiais, dentre outros.

O empreiteiro, de posse de todas estas informações, define qual a melhor metodologia de execução das obras e serviços contratados, ou seja, como irá desenvolver o objeto contratual, em quantas etapas e/ou fases e qual será o caminho crítico. A conclusão do contrato, com a entrega definitiva da obra, depende do atendimento de todas estas etapas e fases, razão pela qual a preservação da sequência executiva é crucial para o sucesso do empreendimento.

Ocorre que, em razão de fatos imprevisíveis ou previsíveis, porém de consequências imprevistas, tais como a falta de liberação de frentes de serviço a tempo e modo, como no caso de contratações com o Poder Público que exigem a realização de desapropriações, ou então, falhas em projetos executivos, sondagens, e outros, pode ser que ocorra a modificação unilateral da metodologia executiva, por meio de determinações do contratante, ao longo da execução do escopo contratual.

A ocorrência de eventos como este, podem frustrar o planejamento previsto para a execução das obras e serviços e impactar os custos originalmente orçados pelo contratado, levando a um possível pedido de revisão, através de pleitos, demanda judicial e arbitral, ou até mesmo a resolução por onerosidade excessiva, razão pela qual a observância do princípio da boa-fé objetiva assume destacada importância neste tipo de contrato.
A experiência adquirida ao longo de anos na prestação de serviços em contratos de engenharia, nos possibilitou identificar um alto índice de reinvindicações administrativas, judiciais e arbitrais em razão de prejuízos suportados pelo empreiteiro contratado decorrentes de atrasos nas obras por motivos de inadimplência contratual do contratante, notadamente, a não liberação de frentes de serviço em tempo hábil e o fornecimento inadequado de projetos executivos, gerando a necessidade de ajustes e revisões.

Muitas vezes, a inexecução de uma desapropriação, o atraso no fornecimento de um projeto ou o surgimento de problemas geológicos que não foram previstos quando da licitação, conduzem o contratante a ter que modificar unilateralmente a sequência executiva planejada pelo empreiteiro, liberando frentes de serviço que não faziam parte do caminho crítico das obras, de forma a evitar ociosidade da equipe e o atraso das obras.

No entanto, esta prática na maioria das vezes tem o efeito de agravar ainda mais o atraso e levar ao desequilíbrio econômico-financeiro, já que a alteração da metodologia executiva planejada pelo contratado pode criar uma situação de completa desorganização das frentes de serviço, com problemas de logística, sobreposição de equipes de trabalho, ociosidade de equipamentos e máquinas locadas, atraso no fornecimento de materiais, entre inúmeras consequências que não se encontravam na álea ordinária do contratado quando da celebração do contrato.

Daí a importância atribuída ao contratante e às equipes de gestão, e aqui se incluem administradores de contrato, em preservar a metodologia executiva planejada pelo contratado, buscando envidar o máximo esforço no cumprimento das obrigações contratuais assumidas. De igual modo, juízes em eventual disputa judicial, assim como peritos, árbitros, membros de comitês de resolução de disputas (DRB) e mediadores, devem ter especial atenção para esta questão.

Nesse sentido, verifica-se que a modificação unilateral da metodologia executiva pelo contratante, de forma a evitar um possível atraso das obras, liberando frentes de serviço diversas das que o contratado havia planejado executar como caminho crítico, é algo passível de violar o princípio da boa-fé objetiva, basilar na interpretação e execução dos contratos em geral, previsto no art. 422 do Código Civil, que assim dispõe: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Referido princípio se traduz, em linhas gerais, no comportamento leal que se espera dos contratantes, com o objetivo de alcançar a função social do contrato, instituto basilar da teoria geral dos contratos, que denota a ideia geral de que o negócio jurídico celebrado não pode ser fonte de enriquecimento de uma das partes às custas da ruína da outra, perpassando ainda pela ideia de socialidade, como objetivo fundamental inserto na Constituição Federal.

Para corroborar referida explanação, cumpre citar a lição do Promotor de Justiça do Estado da Bahia Cristiano Chaves de Farias e do Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais, Nelson Rosenvald, para quem o princípio da boa-fé objetiva:

“trata-se da confiança adjetivada, uma crença efetiva no comportamento alheio. O princípio compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte”.
(FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. V. 4, 2014, pg. 159).

Esse também o entendimento do Conselho da Justiça Federal, que editou o Enunciado nº 26, nos seguintes termos: “A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”.

O contrato, seja ele qual for, não se esgota apenas na obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa. Ao lado desse dever jurídico principal, o princípio da boa-fé objetiva impõe também a observância de deveres jurídicos anexos ou de proteção, não menos relevantes, a exemplo dos deveres de lealdade e confiança, cooperação, assistência, informação, confidencialidade ou sigilo, dentre outros. É o que a doutrina chama de deveres anexos ou laterais, justamente porque ladeiam a obrigação principal.

Relevante destacar aqui para uma melhor compreensão do tema, recente decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais envolvendo a aplicação de referido princípio em um contrato de empreitada, vejamos:

Processo: Apelação Cível – 1.0024.11.081971-1/001 0819711-63.2011.8.13.0024 (1) – Relator(a): Des.(a) Mônica Libânio – Data de Julgamento: 22/02/2018 – Data da publicação da súmula: 05/03/2018 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C PERDAS E DANOS – CONTRATOS DE EMPREITADA – RECONVENÇÃO COM PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE RESOLUÇÃO CONTRATUAL POR ONEROSIDADE EXCESSIVA C/C INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS – PRELIMINAR DE NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO – INTEMPESTIVIDADE NÃO CONFIGURADA – SURGIMENTO DE PROBLEMA NA FASE DE EXECUÇÃO DO OBJETO CONTRATADO – IMPREVISIBILIDADE – DESEQUILÍBRIO FINANCEIRO – PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA – DEVERES ANEXOS DE COOPERAÇÃO, DE AGIR DE ACORDO COM A RAZOABILIDADE E COM A CONFIANÇA QUE SE ESPERA – INOBSERVÂNCIA – VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO – SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO – ART. 625, II, CÓDIGO CIVIL – RESOLUÇÃO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA – ART. 478 DO CÓDIGO CIVIL. Nos termos do art. 478 do Código Civil, nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. O surgimento de um problema na fase de execução do contrato, decorrente de falha no projeto estrutural das fachadas e que não era passível de conhecimento na época da elaboração das propostas, caracteriza acontecimento extraordinário e imprevisível que repercute no equilíbrio financeiro da relação. Diante de uma intercorrência dessa magnitude, que desequilibra a relação contratual e gera onerosidade excessiva para uma das partes, os contratantes devem pautar sua conduta pelo princípio da boa-fé objetiva e, em especial, pelos deveres anexos a ela, sobretudo, o de agir conforme a confiança depositada, o de agir conforme a razoabilidade e o da cooperação. A “imprevisibilidade”, exigida pelo Diploma Civil como requisito para a caracterização da onerosidade excessiva, nos termos do Enunciado nº 17 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, “deve abarcar tanto causas de desproporção não previsíveis como também causas previsíveis, mas, de resultados imprevisíveis”. Nos termos do Enunciado nº 26 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil, “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”. Nos termos do inciso II, do art. 625 do Código Civil, o empreiteiro poderá suspender a obra quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços. A parte que não pauta sua conduta na boa-fé objetiva, e cuja conduta fere os deveres a ela anexos, viola positivamente o contrato e deve, nesse caso, responder pela multa contratual e pelos prejuízos suportados pela outra parte. (grifos nossos).

Como se vê, tanto a legislação pátria, quanto a jurisprudência e a doutrina privilegiam o princípio da boa fé objetiva como instituto essencial a limitar a conduta das partes no seio de um contrato. A questão ganha relevância no contexto de um contrato de empreitada, em que o dever mútuo de cooperação é fundamental para o alcance do objeto contratual, razão pela qual as partes devem ter especial atenção no cumprimento das respectivas obrigações contratuais.

Nesse contexto, a modificação unilateral da metodologia executiva por parte do contratante como forma de atender emergências na obra decorrentes de fatos alheios à responsabilidade do contratado podem representar violação do princípio da boa-fé objetiva, o que poderá resultar na frustração do negócio jurídico celebrado, com destaque para os desdobramentos da resolução do contrato por onerosidade excessiva, da revisão contratual e ainda, das perdas e danos cabíveis.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil brasileiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm. Acesso em 14 de agosto de 2018.

CJF. Conselho da Justiça Federal. I Jornada de Direito Civil. Enunciado 26. Disponível em: www.cjf.jus.br/enunciados. Acesso em 14 de agosto de 2018.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. V. 4, 2014.

TJMG. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Apelação Cível – 1.0024.11.081971-1/001 0819711-63.2011.8.13.0024 (1). Disponível em: www.tjmg.jus.br. Acesso em 14 de agosto de 2018.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *